A descoberta do novo no velho

Foto: acervo/Gazeta Press

Li ainda ontem um precioso artigo do escritor e jornalista gaúcho Michel Laub na UOL sobre a final da Copa do Mundo de 58, em que o Brasil se sagrou campeão metendo 5 a 2 nos donos da casa.

Precioso porque o autor, nos seus 45 anos de idade, ao assistir a partida inteira, em tape gravado no You Tube, se surpreendeu com o que viu: a tal modernidade  expressa no estilo de jogo da nossa Seleção de Ouro, como foi aclamada então.

Sim, porque para os jovens comentaristas e torcedores destes tempos, o que antecede às imagens em cores de 70 está mergulhado numa densa névoa, onde cintilam aqui e ali pontos de luzes resistentes, cada vez mais tênues. que se transformaram em ícones, muitas vezes deformados, na memória coletiva do brasileiro.

Laub, porém, teve um breve momento de contato com a realidade daquela época. E viu Garrincha tentando em vão um drible, Pelé errando um passe, Zito, tentando uma arrancada e sendo barrado, Bellini pegando a bola com a mão num contragolpe dos suecos, esses gestos tão humanos no jogo da vida feito de erros e acertos, ontem hoje e amanhã.

Mas, o que o surpreendeu não me surpreende (mesmo porque acompanhei pela  tv em tapes que chegavam um ou dois dias depois na tv,): a maneira de jogar de nossa Seleção naqueles tempos nada deve à forma atual de atuar das grandes equipes do mundo (aqui, excluo o futebol praticado há anos nos campos tupiniquins). Nada diferente de um City do Guardiola, um Bayern, um Barça, um Real, um Liverpool e mais alguns outros grandes times da Europa.

Jogo jogado, bola trabalhada sempre em direção ao gol inimigo e liberdade tanto para Garrincha ser um driblador emérito, até irresponsável, quanto para Zagallo assumir a pele de Formiguinha, ajudando aqui atrás o já veterano e genial Nilton Santos.

O quê? Garrincha toma a bola do adversário? Pelé combate o inimigo? Vavá sai da área e trabalha a bola com seus companheiros? Isso não está impresso na memória difusa dos nossos experts em futebol.

Tudo isso, na cabecinha dos coleguinhas, é um hábito moderno, pois antigamente, tudo acontecia em câmera lenta e cada jogador ocupava um espaço predeterminado e não saía de seu script original: beque marca, ponta ataca, e assim por diante.

Sugiro que, a exemplo do que fez Laub com a final da Copa da Suécia, os amigos revejam a célebre derrota do Brasil, na Copa de 54, para a lendária Seleção da Hungria bicampeã olímpica e maior sensação desse Mundial. Lá está, claramente flagrado o nosso ponta-esquerda, quatro anos antes de Zagallo, na nossa lateral esquerda combatendo e recuperando a bola de Toth, o ponta-direita adversário.

Maurinho, era assim. Surgiu no Guarani como ponta-esquerda, embora destro (outra modernidade), e disparou no São Paulo, a partir de 52, como um ponta-direita veloz e goleador, apelidado de Flecha Negra. Pois, apesar desses atributos, era um atacante que voltava para marcar com a mesma desenvoltura que participava das ações ofensivas, quando seu time  partia para o ataque.

E que dizer de Telê, o Fio de Esperança do Nélson Rodrigues, que, apesar de franzino, voltava, marcava, armava e ainda fazia seus gols lá na frente, fosse como ponta, fosse como centroavante? Isso, lá pelos 1951.

A propósito é de rolar de rir quando ouço um dos nossos comentaristas chamar de centroavante moderno aquele camisa 9 que sai da área, participa das jogadas de armação, desloca-se para os lados e tal e cousa e lousa e maripousa.

Pra não falar dos mais recentes, como Romário, Ronaldo, Careca, Pagão e tantos outros, remeto-me ao raiar do futebol no Brasil: Artur Friedenreich, o primeiro grande goleador e ídolo do Brasil, nos anos 10,20 e início dos 30.

E aqui quero fazer um parênteses a propósito dos métodos de pesquisa histórica e do interesse de nossos observadores sobre o futebol em alcançá-las, com um depoimento pessoal.

Desde menino ouvia dos antigos as histórias sobre Fried, seu estilo, seus gols etc. cujas imagens nos foram escamoteadas pela falta de tecnologia do seu tempo.  Sim, sei em que a história oral é imprecisa, eivada de lances apaixonadas, quando não apenas lendários, ou de segunda mão. Sou bobo, mas não sou besta.

E ainda hoje, quando o Dr. Alzheimer insiste em soprar névoas na minha memória, sou capaz de reproduzir Fried em ação: um tipo esguio, partindo do meio de campo em velocidade, com a bola colada aos pés, passando por um, dois, tocando pra Arakén e recebendo na área pra encobrir o goleiro com um leve toque. Diga-me, há um centroavante mais moderno do que esse?

Laub, porém, comete o engano de datar o avanço do futebol brasileiro, do ponto de vista tático e estratégico, à Copa de 58.

Não, meu caro. A Seleção de 58, sim, foi a primeira a ter um planejamento. Um planejamento, ponto. Antes, era o vai da valsa. Mas, em 58, quando Havelange entregou a Paulo Machado de Carvalho o comando da Seleção, o Marechal da Vitória chamou três jornalistas de sua confiança e entregou-lhes o dever de criar um plano para a Copa do Mundo: Paulo Planet Buarque, Flávio Iazetti e Ari Silva.

Paulo Planet Buarque, o nosso Paulinho, era comentarista da TV Record (emissora do Dr. Paulo), galã de telenovela, depois de ter sido repórter da Gazeta Esportiva e mais tarde político, cuja carreira encerrou como presidente do Tribunal de Contas de São Paulo. E ganhou fama internacional por ter aplicado aquela rasteira certeira num gendarme suíço, no entrevero entre Brasil e Hungria,

Flávio Iazzeti foi um dos fundadores da Escola de Árbitros da FPF, e Ari Silva, um cronista delicioso com suas crônicas sobre o Comendador Cunegundes com quem ele sempre se encontrava na Leiteira Campo Belo, graciosa remanescente dos anos 20, logo na saída do Viaduto do Chá, na Rua São Bento, em cujas mesinhas de mármore perpetrei péssimos poemas da adolescência.

Antes, logo após à desastrosa excursão brasileira à Europa, em 56, um cartola carioca que havia acompanhado a Seleção nesse giro, fez um relatório em que dizia que negro não estava preparado pra jogar na Seleção, sobretudo na Europa. E citava casos em que os jogadores sentiam demais o frio, acovardavam-se em campo e não tinham comportamento adequado fora dele. E citava como exemplo a imagem do ponta-direita do Vasco, Sabará, descendo as escadas de um hotel de  luxo londrino de sandálias, calções e toalha enrolada feito turbante na cabeça.

Expurgando o racismo expresso no tal relatório, os autores do Plano Paulo Machado de Carvalho, concentraram-se num princípio – o homem antes do atleta.

Traduzindo: o sujeito responsável em lugar do moleque, num tempo em que o moleque, nos dois sentidos – irresponsável e criativo -, dominava o cenário nacional no futebol, na música etc. Por pura ironia, foram os moleques Garrincha e Pelé que deram o tom.

Assim, pela primeira vez na história da nossa Seleção, estabeleceu-se um planejamento com a tecnologia disponível na época. Formou-se uma comissão técnica com um preparador físico, Paulo Amaral, um massagista, Mário Américo, um médico, Hilton Gossling e um dentista, Mário Trigo, responsável não só pra tratar dos dentes dos atletas, pois muitas das lesões musculares dos jogadores da época advinham de problemas dentários. mas também o bom humor da tropa, já que se tratava de  um piadista renitente.

Mas, o que quero dizer é que antes de 58, o Brasil já estava na vanguarda do futebol.

Quatro anos antes, na Suíça, o técnico Zezé Moreira havia lançado sua Marcação por Zona, que, com o correr do tempo haveria de substituir de vez a Marcação Individual, amplamente difundida no mundo inteiro, inclusive no Brasil.

Na verdade, a rapaziada que vive reproduzindo números telefônicos (3-2-45-82-ramal 38) em forma de formação tática, como se futebol fosse aquilo com que eles ainda brincam nos vídeo-games, um pebolim virtual, parece ter deixado os livros de lado, definitivamente.

Um jogo de futebol é dinâmico, feito por homens reais, que se movimentam daqui pra lá o tempo todo, embora os treinadores brasileiros atuais tentem mantê-los em cercadinhos pretensamente modernos e, por isso, eficazes. O que mudou foi apenas a tecnologia que deu mais condições aos jogadores – a preparação física, a nutrição, os equipamentos do jogo, os gramados, a medicina esportiva, a fisiologia, as análises em computador dos adversários etc. Mas, o jogo em si, não.

Tudo isso me remete ao velho xamã de uma tribo Neanderthal. diante da fogueira sagrada, repetindo – “Não há nada de novo sob o sol na alma do ser humano, só a necessidade de anunciar como novo o que é eterno”.

15 comentários

  1. Parabéns pela crônica….Uma beleza o texto relatando nosso futebol campeão de 58 e de outras jornadas citando então atletas consagrados pelo belo futebol praticado naquela época.

  2. Caro Helena, como estamos na mesma faixa etária e problemas de DNA, tomo a liberdade de indicar algumas alternativas para a memória: Gerere, empinar a capucheta, para jovens acaba com a memória pra nós o efeito é contrario aumenta a memória. Cogumelo alucinógenos excelente para depressão e memória e finalmente provegem que é feito de um peixe nos EUA é vendido em farmácias. Quanto a inventar a pólvora como todo bom técnico gosta de fazer e comentarista aprovar com um monte de teorias deixo a palavrar com o Leonardo da Vince era sua cidade e não seu sobrenome, não poderia ter sobrenome pro ser bastardo: A SIMPLICIDADE É A COISA MAIS COMPLEXA DO MUNDO.

    1. O preconceito com coisa novas é intrigante, Não é Vicente Lio? Tudo que afirmei é comprovado cientificamente a maconha foi liberada em muitos estados nos EUA, e o dinheiro para a educação está melhorando, Deixe de ser preconceituoso, obrigado.

  3. Caro Alberto Helena. Como sei que você adora MPB e conhece tudo dela, vai aqui essa pequena homenagem amigo;
    Concessão de Cauby
    ter, 29/05/2018 – 13:16

    Concessão,

    Eu me lembro muito bem

    Vivia no morro a sonhar

    Com coisas que a Globo não tem.

    Foi então

    Que lá em cima apareceu

    A Globo lhe disse a sorrir

    Que descendo à cidade, iria subir

    Se subiu

    Ninguém sabe, ninguém viu

    Pois hoje a Globo mudou

    E estranhos caminhos pisou

    Só eu sei

    Que tentando a subida desceu

    E agora daria um milhão

    Para a Globo perder, Concessão.

  4. Nobre, Helena Jr, obrigado pelo brilhante texto ! O qual deveria ser afixado, na porta de entrada de todos os Clubes, para diretoria e treinador, verem que seu Marketing, sua falácia, não enganam, não colam. E que se não tiverem a humildade de se colocarem nos seus devidos lugares, reconhecendo sua quase insignificância, deixando de se meter em assuntos de outras Equipes, que não lhes dizem respeito, procurando semear a paz entre os Clubes e torcidas, atrapalhando o mínimo possível os bons jogadores, que devem ter liberdade e responsabilidade, para serem os verdadeiros protagonistas, continuarão a complicar, o que é simples, e a matar a “galinha dos ovos de ouro” …

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