As sutilezas do meio-campo

Outro dia, esteve aqui em casa o Ednilson Vaia, que já viera tempos atrás acompanhando o  jornalista inglês Jonathan Wilson, que elaborava então o seu futuro best-seller Triângulo Invertido, acurado estudo sobre o desenvolvimento dos esquemas e táticas no futebol.

Agora, o Ednílson buscava subsídios para uma matéria destinada à revista inglesa The Blizzard sobre a passagem do técnico húngaro Bella Gutman pelo São Paulo, em 1957/58.

Passagem breve, mas vital para o Brasil sair da caixa e levantar o nosso primeiro título mundial na Suécia. Vital, porque seus conceitos básicos influenciaram decisivamente o então superintendente tricolor e futuro técnico brasileiro na Copa de 58, Vicente Feola.

Até então, o futebol brasileiro, que encantava o mundo pela habilidade e criatividade de nossos jogadores, era acusado de desenvolver um jogo pouco objetivo, dado mais à firula do que à busca do gol.

Gutman chegou e numa breve onomatopeia disse tudo: pim-pam-pum ou ta-ta-tá. Três passes, chute a gol. E assim, o São Paulo, que vinha mal no campeonato paulista, arrancou, de súbito, para o título.

Poy, Zizinho e Bela Guttman (acervo)

É verdade que houve um outro ingrediente fundamental para tal reação: a chegada de Mestre Ziza, o Zizinho, o mais completo e genial meia-armador que este celeiro de craques já produziu em toda a história. Não só porque ele passou a orquestrar o time com seu descortino e talento inigualáveis, mas, sobretudo, porque, com sua chegada, Gutman recuou o até então meia Dino Sani para a posição de volante.

A partir daí, o céu se abriu para Dino, que não conseguia, havia sete anos, passar de uma promessa:

– Eu não sabia driblar, gingar de costas para o beque, essas coisas – me confessou um dia o próprio Dino.

Mas, partindo de trás, com a bola dominada, ah, era outra coisa! O campo se abriu diante de seus olhos, o que lhe permitia executar aqueles passes exatos ou chegar às proximidades da área inimiga para soltar aqueles disparos de média e longa distâncias tão fatais. Isso, mais o poder de desarme, facilitado pelo senso de colocação à frente dos beques ou no meio de campo. E Dino decolou de vez pra se transformar num mito, no Milan, no Boca e no Corinthians quando de sua volta já veterano.

Sim, eu sei. Já contei essa história mil vezes. Mas, o que ela tem a ver com o que está ocorrendo neste exato momento no futebol brasileiro?

Sucede que é comum ver nossos comentaristas e treinadores misturando alhos com bugalhos, quando se trata de cuidar de volantes e meias. A diferença entre o jogador talhado por sua própria natureza pra esta ou aquela função é sutil mas fundamental.

São raríssimos os casos de jogadores capazes de cumprir com a mesma eficiência e destreza as duas funções. Você vai pegar um Lima, o Curinga do Santos, aqui, um Zé Carlos (Cruzeiro e Guarani), ali, mais uns tantos.

Essa sutileza na distinção entre um e outro não parece estar ao alcance da maioria, já impregnada dessa maldição chamada dois volantes, um retrocesso no sentido de aumentar o nível de marcação do meio de campo, protegendo mais a defesa do que cuidando de conferir engenho à armação em direção ao ataque.

O Flamengo de Carpegiani está dominando a Taça Guanabara (Foto: Gilvan de Souza/CRF)

Por tudo isso e muito mais, outro dia elogiei aqui a coragem de Carille em manter seu time com apenas um volante (Gabriel), e estendo agora esses elogios a Carpeggiani, cujo Flamengo cumpre impecável campanha no campeonato carioca, jogando com apenas Cuellar mais atrás de três meias – Everton Ribeiro, Diego e Paquetá.

Carpegiani com a camisa do Flamengo, em 1980 (Acervo)

Carpeggiani foi um desses raros meias que podiam cumprir as funções de volante sem perder o senso. Tanto que, na Copa de 74, acabou substituindo Clodoaldo, cortado por lesão.

No Inter, campeão gaúcho invicto em 75, atuou como autêntico meia-armador, tendo atrás Falcão e ao lado o meia-ofensivo Escurinho. No Campeonato Nacional, porém, Minelli inventou a figura dos dois volantes, com Caçapava (mais tarde, Batista) e Falcão. E Carpeggiani passou a atuar mais avançado, quase um ponta de lança.

Já no Flamengo do início dos anos 80, sob o comando de Claudio Coutinho, começou como armador, ao lado de Adílio para, depois, avançar um pouco mais, com a entrada de Andrade à frente dos beques.

Tive longos papos com Carpeggiani e posso assegurar ao amigo que se trata de um cara pleno de ideias sugestivas sobre a maneira de montar um time, algumas passíveis de entubar a mente do cartola e do torcedor comum. Talvez, por isso mesmo não tenha podido manter sua carreira de treinador lá no topo.

Sim, claro, o Flamengo de Carpeggiani ainda não foi testado pra valer, pois o campeonato carioca como os demais estaduais não serve de parâmetro para os grandes confrontos que advirão com a Libertadores e o Brasileirão, por exemplo.

Mas, de qualquer forma, vale a pena acompanhar esse trabalho.

 

 

 

 

6 comentários

  1. Os japoneses da Toyota criaram uma ferramenta para a linha de produção chamada de kanban. Essa técnica a grosso modo é uma sinalização através de cartões para a realização de tarefas para que seja evitado por exemplo trabalhos repetitivos, a fim de que a peça seja entregue no lugar e na hora determinada, O famoso just-in-time.
    Tudo que um jogador de futebol não precisa é ser controlado por um kanban, ou just-in-time, por motivos óbvios. Pois bem. Os volantes brasileiros na sua grande maioria são controlados indiretamente por esse sistema de qualidade, surpreendentemente encampado por boa parte dos nossos treinadores de futebol. Os jogadores, mais especificamente os tais volantes, recebem ordens como se fossem uns robôs: fica ali. marca ali. faz isso ai. olha ali, entrega ali. Qualquer coisa fora dessa sinalização, é entendido como uma falha grave e quem fizer ou criar algo diferente, é sacado do processo. Tite é um dos precursores dessa cultura no Brasil. Casemiro, Fernandinho, Elias, Ralf, Petros Fred são seus mais ferrenhos discípulos.

    1. Meu amigo, vo mi cê ê um papagaio chato pra caralho, minha jovem retina já está cansada de tanto ler esses pobres comentáriios de criatividade.

      Abços.

      1. Bem o fato, Cartola.
        Não é possível julgar algo que ainda não aconteceu.
        Pessimismo à parte, o tempo dirá quem distribuirá as cartas, e, no futebol…ah, você já sabe.
        Acredito muito no trabalho, seja qual for, mesmo que ainda falho em algum aspecto, isso inclui qualquer profissão.
        E, como acredito, acredito e muito no Brasil, apesar da negatividade atual das pessoas.
        Assisti ao jogo Real Madrid x PSG, muito bom e algo simples de comentar o vencedor, pois bem, venceu a melhor equipe, venceu o melhor entrosamento, enfim isso que sempre comento aqui, o estudo leva a vitória, mesmo que contraditória, mesmo que o pequeno consiga vencer o grande.
        Grande abraço e saudações.

  2. Acho que é chegada a hora de rever o conceito meio campo, hoje a defesa busca o meio campo e este busca a defesa e não sai disso. Como a velocidade aumentou muito, hoje temos atletas e não mais jogadores. As categorias de base consideram viadagem os passes longos de trivela,curva, seja lá o nome que quiser, por essa razão não vemos mais essa jogada. Com a velocidade o meio campo tornou-se obsoleto como os zagueiros não sabem passar a coisa está feia. Todos os jogadores com raríssimas exceção chutam de chapa com medo de errar e acaba que erram assim mesmo, o futebol fica chato monótomo e muitos toques na bola sem objetividade. O ideal seria ter defensores capazes de jogarem verticalmente, lançando os atacantes e não passar pelo meio campo, mais uma vez temos um problema com a base que prefere atletas forte e altos e não quem sabe dar o trato na bola. Enquanto paga-se 500mil ao treinador o da base ganha salario minimo quando recebe. Na vida é tudo uma questão econômica,claro que o cara quer subir a qualquer custo, o que ganha não da pra pagar o aluguel. Tudo faz parte de um contesto e o nosso é altamente amador.

  3. Alvissareiras pós carnaval A grande dupla sertaneja Ralf e Hudson está de volta anunciados com estardalhaço pela mídia. Alguém soube por onde andaram jogando recentemente? O que fizeram, e o que ganharam? Nada. Nenhum dos dois joga na proporção do que ganham e são idolatradas. A Gazeta chega a fazer a chamada: Ralf, o Pit Bull está de volta. Diga-se de passagem é uma manchete bem apropriada pelo que ele não joga. Hudson é um Petros menos falante, porém, seu futebolzinho limitadíssimo tecnicamente se assemelha muito ao tricolor. Esses jogadores Casemiro, Fernandinhp, Petros, Ralf, Hudson são gêmeos no futebol tosco que os igualam. Ponham eles para jogarem num time de série C e nenhum deles fará a mínima diferença ou torcedor algum sequer lembrará que um dia vestiram a camisa de um time grande.

  4. Carpegiani sempre foi adepto do jogo jogado, sempre pra frente. Lembro de sua última passagem pelo Tricolor Paulista onde colocava o time pra frente sem medo de ser feliz, chegando por vezes a atuar com 4 atacantes. Infelizmente teve sua passagem abreviada pela velha miopia que assola os cartolas brasileiros. Quando assumiu o Flamengo sabia que iria surpreender aqueles acostumados ao senso comum.

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