Alterações nas regras do futebol – 2023/2024

Foto: AFP

Quando uma norma não respeita a essência da matéria que disciplina o resultado de sua aplicação dificilmente será positivo.

Por meio da Circular nº 27, de 23/03/2023, a Ifab (International Football Association Board), que é a entidade responsável pelas regras do futebol, divulgou as alterações realizadas para o indicado período e prestou esclarecimentos sobre as regras vigentes.

Algumas dessas alterações ou esclarecimentos merecem análises, tanto para dirimir dúvidas e afastar visões distorcidas, como para demonstrar que a Ifab nem sempre cumpre seu papel com pleno acerto, em especial porque, ao tratar de determinadas matérias, desconsidera a essência do futebol, podendo produzir efeito ou entendimento equivocado.

Vamos a algumas das alterações:

a) Regra 3 – OS JOGADORES – Gols marcados com pessoa não autorizada no campo de jogo

Nessa alteração a Ifab corrigiu seu imperdoável erro de raiz e que feria a essência do jogo e da vida: a reparação de um dano deve ser proporcional ao prejuízo causado. Aliás, expressamos por escrito nosso entendimento quando o dispositivo ora corrigido foi introduzido na regra, pois, à época, éramos representante da Conmebol e da CBF na Ifab.

O certo, agora, é que um gol marcado com a presença em campo de uma pessoa não autorizada só será anulado se essa pessoa interferir no desenvolvimento do jogo. Com isto foi afastada a incabível norma de anular-se um gol pela simples presença de uma pessoa extra no campo, ainda que sem qualquer interferência no desenvolvimento do jogo e, pior ainda, com a possibilidade de se marcar até um tiro penal contra a equipe da pessoa extra.

Vale recordar a controvérsia gerada no jogo entre Atlético-MG e Palmeiras, pela Copa Libertadores de 2021, no gol de empate do Palmeiras, que, para alguns, deveria ter sido anulado, apenas porque um jogador do Palmeiras, que não estava jogando, simplesmente colocou seu pé dentro do campo, sem, pois, ainda que minimamente, ter interferido no jogo.

Felizmente, o árbitro não viu tal fato e não anulou o gol, que teria sido ilegal de acordo com a equivocada regra então vigente.

Agora, repita-se, felizmente, a Ifab corrigiu seu imperdoável erro. Antes tarde do que nunca!

b) REGRA 7 – DURAÇÃO DA PARTIDA – comemoração de gols

Em que pese as normas deverem ser o mais claro possível, neste ponto a Ifab “choveu no molhado” e, talvez, provoque uma interpretação distorcida. De fato, pois, pela essência da regra, toda paralisação significativa do jogo deve ser acrescida ao final de cada tempo. Ora, sendo assim, ao destacar as comemorações de gols, a Ifab está assumindo o risco de os árbitros desconsiderarem as comemorações normais e acrescentarem todos os períodos correspondentes, gerando fuga da essência do jogo, pois as comemorações normais, como, aliás, a regra deixa entendido, não devem gerar acréscimos.

Nesse passo, recorda-se que os pênaltis marcados, sobretudo em jogos com VAR, que exigem confirmação, normalmente geram perda de tempo superior às comemorações dos gols, mas que não mereceram tratamento igual.

O certo, todavia, é que, no atual sistema de acréscimos, os árbitros estão negligenciando o aspecto preventivo, por meio do qual deveriam impedir paralisações indevidas, que têm tornado o

futebol “chato”; quebram a autoridade dos apitadores; causam irritação no público; eleva a temperatura dos jogos; e provocam desânimo na equipe que está perdendo. Tudo, pois, milita contra o natural desenvolvimento das partidas.

Aguarda-se que uma boa instrução impeça que os árbitros sejam mais contabilistas do que aplicadores da essência da regra, de modo a evitar os inconcebíveis acréscimos de hoje, que beiram a 20%, em média, de cada período de uma partida.

c) REGRA 11 – IMPEDIMENTO – distinção entre “desvio” e “jogar deliberadamente”

Um jogador que esteja em posição de impedimento só deve ser punido se for envolvido em jogo ativo e após a bola ser jogada ou tocada em um companheiro. Também deve ser punido se a bola for “rebotada” ou “desviada” em um adversário.

Porque o “desvio” tem gerado muita dúvida e, pois, errôneas interpretações, a Ifab estabeleceu os critérios para esclarecer o assunto.

O texto da regra é muito claro e não possibilita dúvida: Só há desvio quando um jogador, apesar de jogar a bola, o faz sem ter tempo e espaço para controlar seus movimentos, ou seja, quando toca na bola por ato de puro reflexo, não, absolutamente não, quando tem tempo para jogar, para controlar seus movimentos, mas joga mal, como a própria regra estabelece.

Tudo claro, muito claro. Todavia, algumas interpretações distorcidas estão gerando controvérsia, porque a regra fez uma observação exemplificativa sobre a natural dificuldade de um jogador ter pleno domínio da bola quando a joga com a cabeça.

Exemplo clássico dessa distorcida interpretação foi o gol da seleção do Brasil no amistoso com o Marrocos, em que o defensor do Marrocos jogou a bola vinda de uma distância significativa,

quando, portanto, teve tempo e espaço para controlar seus movimentos, até porque correu para a bola. No lance, o defensor jogou deliberadamente e, assim, habilitou o jogador brasileiro. O gol do Brasil foi mal anulado, em que pese o jogo contar com VAR, pois, pelo texto da regra, tratou-se de erro claro, óbvio, que exigia a intervenção do VAR.

Vale enfatizar, o que se fazemos com base no texto da regra, que o fato de jogar com a cabeça não exclui a possibilidade de se jogar deliberadamente. Aliás, prova maior disso é o elevado número de gols marcados com a cabeça pelos atacantes. Joga-se futebol com todo o corpo. Logo, a circunstância da facilidade ou dificuldade de alguma parte do corpo em dominar a bola não pode eliminar a possibilidade de se jogar deliberadamente, inclusive com a cabeça, desde que haja tempo e espaço para se controlar o movimento.

Não é o controle da bola ou o jogar como se pretendia a essência da regra do impedimento para o caso, mas o poder realizar essas tarefas com base no tempo e espaço que um jogador tenha.

De outro lado, justamente por estar associado ao tema, oferecemos nosso entendimento, já expressado perante a Ifab, de que a regra, ao criar as figuras do “rebote” e, principalmente, do “desvio” feriu a essência do impedimento (bola vinda de um companheiro) e, mais ainda, tratou desigualmente atacantes e defensores. Com efeito, ainda que haja um toque da bola sutil em um atacante e que não desvie minimamente sua trajetória, nasce uma nova jogada e, portanto, haverá sempre impedimento. Não obstante, quando há um “rebote” ou “desvio” em um defensor, ainda que a bola tenha sua trajetória totalmente desviada, não nasce uma nova jogada. Essa realidade, portanto, fere a questão de causa e efeito, pois uma bola que tenha sua trajetória claramente desviada só chega a um atacante por conta de tal mudança de trajetória.

Foto: AFP

O resultado de tudo, desse modo, é que a regra trata diferentemente os toques na bola em atacantes e defensores, o que termina, inclusive, contrariando a ideia de que “o gol deve ser prestigiado”. Prova de tal incongruência e do tratamento desigual entre atacantes e defensores é que se um defensor impedir um gol em sua meta e, neste caso, ainda que jogando deliberadamente ou mesmo por meio de um “rebote” ou de “desvio”, mesmo alterando completamente a trajetória da bola e que, somente por isso, vá para um atacante que anteriormente estivera em posição de impedimento, mas completamente distante do contexto da jogada, o impedimento deve ser marcado. Resultado: o defensor impede um o gol e ainda ganha o prêmio do impedimento de tal jogador, conquanto seja certo que a bola só chegou até ele por consequência da jogada deliberada, do “rebote” ou do “desvio” em tal defensor.

É bom registrar, nesse passo, que o “rebote” e o “desvio”, em última instância, na essência, na essência, são decorrência de uma limitação técnica de um jogador.

Julgamos assim e por consequência, como já sugerimos à Ifab, quando dela fizemos parte, que a regra do impedimento precisa ser repensada para considerar a questão da causa e efeito: qual foi a causa de a bola chegar a um jogador que estava em posição de impedimento? Foi o toque no defensor? Se sim, não deveria haver impedimento, pois nasceria uma nova jogada. Se não, ou seja, se a bola chegaria ao atacante independentemente de tocar em um defensor, ou seja, se a bola não tiver sua trajetória mudada, o impedimento deveria ser marcado, salvo se o defensor jogasse deliberadamente, ainda que para impedir um gol (defesa deliberada – salvada em espanhol). Repita-se: tudo é questão de causa e efeito.

d) Regra 12 – FALTAS E INCORREÇÕES – punição do 1º treinador

Neste ponto, a alteração da regra foi no sentido de que, quando não for possível identificar o autor de uma infração, o 1º treinador só deve ser punido se o infrator for um integrante da área técnica, não se for um jogador que esteja atuando.

Aqui, ao lado de a regra já ser de todo equivocada em relação a se punir o treinador, pois isto fere os princípios da individualidade e pessoalidade da punição, que não podem ser superados pelo fato de o treinador ser o comandante maior de uma equipe, ainda há uma incongruência inconcebível. Realmente, pois se não é possível identificar o autor de uma infração, naturalmente que não será possível detectar se tal infração foi praticada por um jogador ou por um integrante da área técnica.

O certo, dessa forma, seria que, se os árbitros não tivessem capacidade para detectar o autor de uma infração não poderiam punir um terceiro.

A incapacidade da arbitragem não pode ser suprimida por punição indevida;

e) REGRA 14 – O TIRO PENAL – Atitude antidesportiva dos goleiros

Este é mais um ponto em que uma simples orientação, como, aliás, dávamos e enfaticamente aos árbitros quando éramos instrutores da CBF, que não precisaria de disciplinamento nas regas do jogo.

Com efeito, sabe-se que as ações dos goleiros, sobretudo se aproximando do cobrador do tiro penal, não têm outra razão de ser senão a de desestabilizar emocionalmente o cobrador. Logo, isso passa mais pela autoridade do árbitro, pela essência do futebol e pela ética, do que por disposição específica da regra.

Sendo assim, entendemos que a Ifab apenas deveria, juntamente com a Fifa, baixar orientação para os árbitros cumprirem a regra, impedindo, pois, que os goleiros pratiquem ações para desestabilizar o adversário, que caracteriza atitude antidesportiva.

Todavia, ao inserir essa norma nas regras, a Ifab dá a impressão de que as ações de tal natureza praticadas pelos goleiros até então eram legais, estavam consentidas e atendiam aos princípios éticos do esporte.

Assim, o que a Ifab fez foi corrigir o que não precisava ser corrigido, pois a essência do jogo, uma vez que o futebol não é o esporte da malandragem, já veda, por natureza, as ações da espécie.

f) VAR – não divulgação de diálogos e de imagens em tempo real

Nesse ponto, apesar de a Ifab, após o Mundial do Catar, haver prometido que seria diferente, houve um infeliz recuo e continuaremos com a arbitragem do “segredo”, como denominamos em colunas precedentes em que o assunto foi tratado. É uma pena! E pena que a Ifab não descobriu que o futebol é do mundo e não dos organizadores, bem como que a transparência é o maior escudo para quem atua com ética.

Para fechar, registramos que algumas dessas alterações e/ou esclarecimentos não se harmonizam com a essência do futebol ou com a ética, o que fortalece a conclusão de que “Quando uma norma não respeita a essência da matéria que disciplina o resultado de sua aplicação dificilmente será positivo”.

Ao leitor, a palavra final.

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