Au revoir, mon ami!

Michel Laurence não foi só um amigo querido por mais de quarenta anos. foi um ser humano de alma solidária e cabeça repleta de histórias curiosas, dramáticas, engraçadas quando não trágicas. E um jornalista de escol, pertencente à fina linhagem dos Laurence, que vem de seu pai Albert e continua em seu filho, o nosso Bruno Laurence, repórter da Globo.

O francês Albert, pra quem não sabe, foi um dos expoentes da crônica esportiva carioca, entre outros feitos, editando a seção de Esportes da Última Hora, de Samuel Wainer, além de ter coberto para L’Équipe a Copa Rio de 51, o primeiro campeonato mundial interclubes, vencido pelo Palmeiras. Assinava várias crônicas e reportagens que, ainda menino, me fascinavam.

Michel, igualmente francês, nascido em Marselha, em 1938, já havia trabalhado no Rio, no Jornal do Brasil, creio, antes de encontrá-lo no Jornal da Tarde, no final do ano de 1965, quando pra lá fui na condição de crítico de música popular, enquanto ele já brilhava na vanguarda de um grupo de jovens repórteres que mudariam a face do jornalismo esportivo, ao lado de Vital Battaglia, José Maria de Aquino, Dante Matiussi e outros.

Como o futebol já me roía as entranhas, passava mais tempo papeando com a turma do Esporte. Ficamos amigos e, em comemoração a isso, bebemos tudo que havia nas prateleiras dos botequins da época.

Assim como eu bebia de sua fonte em reportagens históricas como aquela em que ele falava do seu Santos: Onze camisas brancas ao vento,  em que Michel falava do maior time de todos os tempos, o Santos de Pelé, arrancado de suas raízes e flutuando pelo mundo todo; em cada canto, deixava uma semente de inventividade, beleza e eficácia. um primor de reportagem ilustrada por uma foto inesquecível de tão sofisticada simplicidade – onze camisas brancas, adejando num modesto varal de fundo de quintal.

Não lembro se a pequena obra-prima era fruto do talento nato de Domício Pinheiro, o fotógrafo de Pelé, do Reginaldo Manente ou do Manoel Mota, o Motinha, outro amado companheiro que nos deixou muito cedo, anos atrás. O mesmo Motinha que, já na Revista Placar, ajudou Michel a criar a Bola de Prata, o mais antigo e prestigioso prêmio aos melhores do futebol no ano.

Ah, o Motinha… E, como Michel era cultor inveterado dessas histórias antigas de jornalistas, sinto-o vivíssimo aqui ao lado soprando no meu ouvido: “Conta aquela do Motinha. conta…”

Como resistir a um último pedido do velho amigo?

Pois, lá vai.

Ano, 1964, logo depois do golpe militar. O país fechado, mergulhado em trevas e ódio, amigos sendo presos torturados, assassinados pelas forças da repressão. O hoje acadêmico Antônio Torres, o B1 (tradução: Baiano 1) editava uma revista chamada Finesse, um dos bastiões da resistência cultural, então nos convida para fazer uma reportagem em Parnamirim, base militar da Aeronáutica no Rio Grande do Norte, fruto de um acordo entre Getúlio Vargas e o presidente americano Roosevelt, à época da Segunda Guerra Mundial.

Eu, saindo da Folha para a Revista O Cruzeiro, e o Motinha na sucursal paulista do Jornal do Brasil. também em vias de ir para O Cruzeiro, embarcamos num avião da FAB, ao lado de ilustres convidados, e fomos instalados no Cassino dos Oficiais da FB em Parnamirim. De dia, cobríamos a vaquejada. De noite, íamos pro brega, a Casa da Rita Loira, um bordel finíssimo, com tapetes de veludo vermelho e belas morenas recepcionistas.

O diabo é que, para sair e entrar na base militar, precisávamos ser conduzidos por um cadete, o aspirante Brandt, jovem amigável, mas cdf como ele só. Quando saíamos da base, o aspirante punha a cabeça pra fora do jipe e berrava para o vigia da cancela: “Aspirante Brandt!”. Imediatamente, o reco levantava a cancela e nós partíamos para a farra. Na volta, idem. E a volta, por ordem do comandante, teria de ser sempre antes da meia-noite, justo quando a coisa toda começava a esquentar.

Motinha, então, teve uma ideia. Dispensou o aspirante Brandt de suas obrigações enfadonhas (o rapaz preferia dormir às nove da noite e não ficar esperando-nos até tarde). E passamos a chamar um táxi. Na saída, Motinha gritava da janela para o vigia: “Aspirante Druffs!”, e a cancela subia. Na volta, lá pelas quatro da matina: “Aspirante Plefs!”, e a cancela se abria.

Já pensou se fôssemos dois terroristas? Ah, mas ainda não havia terroristas nos tempos do Motinha e do Michel repórter, embora houvesse o terror da ditadura em seus primeiros passos.

Pronto, Michel, já contei. As outras, deixo pra ouvir de você logo, logo, quando estivermos novamente juntos, baixando todas as garrafas das prateleiras dos céus.

 

 

 

 

 

 

2 comentários

  1. Como Santista, blogueiro e apaixonado por futebol fico triste com o passamento do Michel, cheguei a enviar alguns comentários na antiga coluna dele no IG, ele quase sempre respondia chegando uma vez a tirar sarro de mim por que tinha feito uma homenagem ao Centenário Corinthians. Da geração mais antiga haviam 3 grandes, Michel, Armando e você mestre. Só sobrou você, portanto, torço ainda mais para que continue com saúde, por que de resto, os blogs da internet estão ruins pacas. Honrosas exceções Juca Kfouri (quase da velha geração pode se dizer), Mauro Beting (geração intermediária) e Rica Perrone (o mais jovem, não o mala mais velho do UOL).

    Abs mestre

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