Falando de pimentas e corpos… vivenciar intensamente

 

É certo que a compreensão que temos das coisas caminha par e passo com nossas experiências, vivências, curiosidades e saberes sobre estas coisas. Não há como conhecer o gosto da pimenta malagueta sem prová-la. Você pode saber que ela é muito ardida. Mas para saber disso, alguém tem que ter-lhe contado ou você estudou sobre a pimenta. Há ainda outra possibilidade: você pode ter visto alguém comer pimenta, estando este desavisado sobre o ardor que ela causa. Supondo que esse alguém tenha sido muito discreto em relação à surpresa que tal sabor causou, você, estando sentado à mesa com ele, deve ter percebido sua expressão facial, seus olhos lacrimejando, sua face ruborizada e sua tentativa de colocar algo rapidamente na boca, seja ar ou algum líquido. Mas como saber que tudo isso foi causado pela pimenta malagueta? Você, para saber disso, tem que ter saberes prévios sobre a pimenta e sobre as reações que ela causa a quem não está acostumado a lidar com ela.

Pensando desta maneira, para sabermos o que é corpo, deveríamos viver (ou ter vivido) nossos corpos e ter observado tantos outros corpos. Deveríamos conhecer diferentes reações a uma mesma causa, tal como o efeito da pimenta a quem está ou não está acostumado a comê-la. O discreto provador da pimenta tentou esconder seu sofrimento. Para sabermos o que é corpo, temos também que saber ler os recados subliminares do corpo, tanto na perspectiva de quem se mostra via corpo, como de quem observa esse corpo. Além disso, devemos admitir tantas outras possibilidades relacionadas à causa e à consequência em relação ao que se lê, tanto em nosso corpo, como em corpos alheios. Imagine se a reação que observamos ao provador de pimenta não venha do sabor da pimenta, mas de uma reação alérgica ao tempero do feijão que acompanha a refeição! Ou ainda do fato do provador engasgar com um grão de arroz que foi para o lugar errado! Ah, isso não, senão ele teria tossido! E como sabemos disso? Aprendemos que quando engasgamos, uma das reações corporais é a tosse involuntária ou o impulso de vomitar. Esse aprendizado nasce da observação de pessoas engasgando e da lembrança das sensações quando nós próprios engasgamos.

E quando o assunto é um saber geral sobre o corpo e não apenas em relação a uma de suas reações? Um médico sabe o que é corpo, pois, dentre outras experiências, conhece seu funcionamento, viu-o por dentro, sabe como nele interferir, sabe fazê-lo funcionar, como também sabe fazê-lo parar de funcionar. Sabe o que o faz bem e o que o faz mal, como também sabe interpretar e localizar suas necessidades, a partir de sua postura, seus cheiros, suas cores, sua constituição. Sabe, inclusive, prever ao que está propenso, a depender do modo como ele vive, descansa, trabalha ou se alimenta. Melhor dizendo, um médico sabe tudo isso, pois, paulatinamente, aprendeu.

Nós, adultos e crianças não médicos, também podemos aprender a conhecermos plena e paulatinamente nossos corpos e corpos alheios. E talvez, a melhor maneira de fazer isso seja por meio da vivência corporal, sempre reflexiva, sensível, corajosa, curiosa, lúdica, segura e investigativa.

Texto extraído do capítulo “Educação Corporal na perspectiva da escolarização” de autoria de Mildred Aparecida Sotero e Osvaldo Luiz Ferraz, do livro “Educação Corporal: entre anúncios e denúncias” Editora CRV 2016

18 comentários

  1. Muito bons os textos.
    Interessantes as comparações entre a constatação dos ardores das pimentas e os avisos corporais nos exercícios e na falta deles.
    Nunca é tardio reconhecer e enaltecer o trabalho de alguém que se dedica a ajudar o próximo, mesmo não tendo os melhores meios para isso.
    Parabéns!

  2. Prezado Carlos Aragão
    Realmente, se nossas crianças não tiverem a oportunidade para vivenciarem alternativas das práticas da cultura corporal de movimento como poderão ter uma vida ativa? E quando menciona a ausência de condições para oferecer estas oportunidades, relata a realidade a que são submetidos os professores de alguns dos componentes curriculares do currículo escolar, tais como: Filosofia, Sociologia, Artes e a Educação Física. Obviamente, para os outros componentes também existem barreiras. Um país que adota educação apenas nos discursos colhe frutos de sua irresponsabilidade. Aliás, falamos isso a, pelo menos, meio século.

    1. Caro Mestre,
      Li um artigo do atual Secretário de Educação de São Paulo que não trata especificamente de Educação Física, mas dá uma visão geral e atual do Ensino e das relações Aluno/Professor/Escola/Família. Achei interessante e lúcida. Transcrevo abaixo:
      NÃO É SIMPLES
      JOSÉ RENATO NALINI 9 DE FEVEREIRO DE 2017

      Não se consegue, com respostas simples, resolver problemas complexos. E é complexa a situação da educação em todo o mundo. Por várias e discutíveis razões.

      Questiona-se o ensino tradicional, paralisado no tempo e baseado na equação: o professor fala, o aluno aprende. As novas gerações nascem plugadas nas redes sociais, praticamente com “chips”. Navegam pela internet e têm desenvoltura para encontrar respostas praticamente para tudo. Já se chegou a questionar a permanência da escola como local de ensino/aprendizagem. Ampliou-se o conceito de formação adequada: há uma educação formal, cujo ambiente natural é a escola e uma educação informal, presente em todos os espaços. A vida ensina a quem quer aprender. O conhecimento nunca esteve tão acessível e disponível. A curiosidade é a chave para desvendar todos os mundos: o da cultura, o da ciência, o das artes, o da história e de outros campos.

      O Brasil é um caso emblemático. A educação é direito de todos, mas dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade. O Estado, segundo a Constituição, tem de destinar 25% do orçamento para a educação. São Paulo reserva mais. Ultrapassa 30% e chega quase a um terço do orçamento voltado à educação pública.

      Não é pouco o montante de recursos. Em 2016, foram R$ 28 bilhões. Mas os resultados não correspondem à consistência do investimento. Qual o motivo? Ou melhor, quais os motivos?

      Além do próprio repensar nos métodos de ensino, impõe-se observar que o declínio dos valores não prestigia o esforço, o empenho, o sacrifício e o devotamento. O famoso “currículo oculto”, propiciado no lar, principalmente pelas mães, foi negligenciado. Não se insiste no respeito ao professor, na responsabilidade do aluno ante os compromissos de quem realmente quer aprender. O descrédito nos acenados benefícios de um curso bem feito, ante a ausência de perspectivas para quem se entregar com seriedade a um aprendizado consequente.

      O momento é de assumir protagonismo heroico. Os mestres a assumirem o desafio de ministrar aulas interativas e a cada dia mais interessantes, os alunos a aceitarem o repto de mergulharem no estudo sério, as famílias a estimularem seus filhos na caminhada e a uma reiteração consequente daquilo que ainda continua a ser veraz: sem o conhecimento não se alcança vida digna, nem capacitação para o trabalho, menos ainda qualificação para o bom exercício da cidadania.

      José Renato Nalini, secretário da Educação do Estado de São Paulo

  3. Uma ótima comparação, que abrange vários temas do cotidiano.
    Vivenciei isso durante vários anos da minha vida. Pois com a entrada no ensino fundamental II eu acabei parando de participar das aulas de educação física, simplesmente por medo de vivenciar isto com novos colegas não conseguia confiar em meu próprio corpo, sempre pensando : ”E se eu cair o que irão pensar de mim?” esse ”E se” é o que atrapalha a vida de muitas crianças e jovens que deixam de participar da aula por medo. A aula de educação física é um espaço para aprendermos a pensar em coletivo e vivenciar experiencias novas.

    1. Olá, Hadassa
      Você pode superar esta situação. Você tem liberdade de escolha e de participação. Proponha novos caminhos.

  4. Alessandra
    A Educação espera por pessoas como você. As crianças, adolescentes e mesmos os adultos carecem de profissionais/professores altamente envolvidos com a individualização, respeito e construção de novas alternativas corporais. Vamos vivendo e deixando passar oportunidades de transformar e ser transformado. Há esperança enquanto houver seres que pensam “fora da caixinha”, não é?

  5. Caro professor, um texto muito bem colocado e que exemplifica bastante as características específicas do corpo humano e os seus mecanismos como um todo, mostrando assim que em sua totalidade de detalhes nós podemos entender e nos preparar para que nossas vivencias, estudos e observações do dia-a-dia sejam uma ferramenta de analise corporal. Tudo o que nos constrói como corpo nos faz entender o próximo e a sociedade como um todo, trazendo assim o levantamento de como nós moldamos uns aos outros com nossos costumes, vivencias, encinamentos, vícios e convívios. Hoje, somos frutos de tudo que nos cerca e de toda a necessidade, que tivemos enquanto humanidade, mas me leva a pergunta da qual imagino a resposta: Será que o entendimento sobre a mudança no corpo que temos hoje será o mesmo em alguns anos? Ou será, assim como ele é agora, diferente de algumas gerações atrás?

  6. Olá, professor Daniel!
    Este texto é bastante esclarecedor e faz nos questionar como as crianças vão vivenciar as mais diversas práticas de movimento e serem ativas, senão tem oportunidades para elas potencializarem e conhecerem seu corpo profundamente. Lembrei das discussões que tive na sala de aula sobre as aulas de Educação Física na escola e saber que a maioria das crianças tem a aula como um “rachão” e muitas sofrem bullying pelo seu próprio corpo,assim sendo excluídas de participarem das aulas. Muitos tratam as crianças como adultos em miniatura e já pensando no futuro, sem se preocupar com a complexidade daquele corpo. Como futura professora de Educação Física, devo procurar maneiras para quebrar as barreiras que são impostas culturamente e levar em conta que temos que olhar o corpo de outras maneiras,saber que cada corpo é singular e com as convivências com os outros que vai se construindo.

  7. Olá, professor Daniel!
    Esse texto é bastante esclarecedor e questiona como as crianças vão vivenciar as práticas de movimento e serem ativas, senão tem oportunidade para potencializar suas capacidades e habilidades. Lembrei das discussões que tive na sala de aula sobre a aula de Educação Física, e que muitas crianças sofrem bullying por causa do seu corpo e não sabem como reagir, além de ficarem excluídas das atividades. Muitos ainda tratam as crianças como adultos em miniatura e pensando já no futuro, e esquecendo de se preocupar com o que elas querem e sentem. Como futura professora de Educação Física, concordo que devo buscar maneiras para quebrar barreiras que são impostas culturamente e olhar o corpo de várias maneiras para compreender a sua singularidade, a partir da convivência com outros corpos.

  8. Estou adorando os textos do seu blog Professor.
    Particularmente, achei bem interessante a recomendação de conhecer melhor o corpo através da vivência corporal, principalmente para as crianças da primeira infância, visto que quanto mais se amplia a realidade externa dela, através de vivências lúdicas, ricas e diversas, ela passa a ter necessidade de uma organização interna coerente, para que possa pegar suas experiências e utiliza-las da melhor forma possível. E o contrário também acaba acontecendo, uma vez que ao ampliar sua realidade interna, ele também precisa organizar e buscar novos horizontes externamente, pois é como se o corpo tivesse fome de mais experiências.

  9. É fascinante perceber como uma pequena relação como o conhecimento sobre um alimento pode ser comparada, vivenciada e experimentada. Como na psicomotricidade uma pequena brincadeira ou ação pode influenciar o desenvolvimento e a vida de uma criança. Fascinante perceber o quanto a influência da reação do outro pode te fazer provar ou não algo. E quanto essas pequenas coisas nos influenciam de maneira enorme.

  10. A Educação Física é uma disciplina que tem grande relevância nessa jornada de conhecimento sobre o corpo, pois pode proporcionar desde a infância momentos de novas experiências, contatos com outras pessoas que não sejam as do seu ambiente familiar, permitindo novas descobertas e percepções sobre seu próprio corpo a partir da realização de uma diversidade de movimentos e da linguagem corporal.

  11. Boa noite, Professor.
    Acredito ser um texto muito relevante sobre o assunto, no qual é possível gerar uma boa reflexão referente as experiências corporais na infância. Com o pensamento de viver ou ter vivido nossos corpos para sabermos o que é corpo, podemos fazer um paralelo com a importância da educação física na educação infantil, pois desde cedo somos corpo em movimento e temos as várias possibilidades de vivenciar, experimentar a cultura corporal do movimento que é reprimida ou mal explorada no ambiente escolar infantil. Devemos enquanto professores formados ou em formação respeitar nossos infantes, estimulando novas vivencias, contados e experiências tanto para a aprendizagem quanto o desenvolvimento motor, lembrando que dos 2 aos 7 anos de idade as crianças estão na fase fundamental no qual é um período de grande importância para essa estimulação.

  12. O conhecimento sobre o corpo é de extrema importância, principalmente, por se o nosso objeto de trabalho. A educação física esta intimamente ligada a essas reações e sensações do corpo. Somos os estimuladores para uma vida saudável , por isso devemos ser tão observadores desses corpos e de suas diferentes formas de expressão.
    Karla Virginia
    estudante de educação física _ UFC

  13. Caro Prof. Daniel Carreira,
    Passando pelas linhas do texto, pude atentar para a importante temática abordada. Precisamos nos permitir vivenciar de maneira plena o nosso corpo através das práticas corporais, e por meio delas conhece-lo e se deixar conhecer. O nosso corpo torna-se então uma forma de expressar nossos valores, nossa cultura e a nossa identidade, fazendo assim com que as pessoas possam nos conhecer e conhecer a cultura a que pertencemos através dele.. Torna-se então de grande relevância se propiciar o conhecimento pleno de nosso corpo nas diferentes fases de nossa vida, para que assim possamos ser representantes de uma cultura que dá a devida importância a esse poderoso meio de expressão, que é o corpo.

  14. Dr Daniel. Experimentar, criar e recriar, significar e mostrar, através de vivencias com o corpo constitui um processo de aprendizagem.

  15. Ola novamente, temos aqui um excelente texto e parando pra pensar, realmente só podemos descobrir algo quando experimentamos, temos vivência de algo e isso não seria diferente para a criança e ainda mais para ela, que é um ser em construção constante com outras crianças, pois como diz Sarmento, a infância é o espaço intersticial de dois modos, a ligação entre o mundo adulto e o mundo infantil, sendo esse entre-lugar renovado pela ação coletiva das crianças, e que a partir disso, podemos também renovarmos nosso modo de ver a vida e ver os corpos dos outros, corpos esses que para nós adultos dependendo do contexto é tão criminalizado, mas que veríamos sob a ótica simples do mundo infantil.

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